"O cardeal Martini tinha a arte de ajudar a encontrar o fio do sentido de situações intrincadas, a atravessá-las sem medo, relacionando-as às grandes narrativas bíblicas. À luz da Palavra de Deus nos era reproposta para novas narrativas. Isso tornava o seu cuidado pastoral profundamente familiar e eficaz: era o fundamento comum da lectio divina que se revelava uma poderosa ajuda para nós", escreve Maria Ignazia Angelini, monja da Abadia Viboldone, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 31-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Uma tarefa impossível: apresentar um breve testemunho sobre o amado arcebispo e padre Carlo Maria Martini. Testemunho a partir da vivência - pessoal e comunitária - da sua presença na vida da comunidade monástica. Resumir a parábola de um vínculo espalhado por mais de trinta anos de vida eclesial, comunitária e pessoal. Um impossível que, no entanto, não poderia ser declinado. Em nome da gratidão e da fidelidade à memória viva e eficaz.
Antes não tínhamos nenhum conhecimento (só pelos livros de exegese): quando ele entrou em nossa diocese, tudo começou imediatamente, de repente. O novo arcebispo pediu para ser hospedado (a cada quinze dias) para um dia de silêncio no mosteiro. Ele era um pouco intimidante à primeira vista, mas sua presença tão discreta logo reduziu a sujeição a espanto, atração respeitosa, simpatia. Somente à noite, em suas estadas, nós o vimos: rezava as Vésperas conosco, seguidas por um diálogo comunitário na conclusão. O primeiro contato foi, portanto, intenso: além do silêncio, rezar juntos os salmos.
O saltério rezado juntos: uma experiência geradora. Suas palavras para o 26º aniversário da morte do cardeal Alfredo Ildefonso Schuster (citação de um testemunho do cardeal Giovanni Colombo sobre o bispo monge) evocam, sim, a intensidade da experiência de Schuster, mas sugerem o próprio espírito com que Martini se unia à salmodia comunitária: “Abandono seu sentido literal para me sentir na terra sem limites por onde passa a Igreja peregrina e militante, a caminho da terra prometida. Respiro com a Igreja, em sua luz de dia, em suas trevas à noite (...) me encontro no meio, mas não como um espectador passivo. É com palavras como essas que sinto o Cardeal Schuster reviver aqui entre nós, presente”.
A feliz surpresa desse primeiro impacto aumentou quando Martini nos envolveu na elaboração da primeira carta pastoral: A dimensão contemplativa da vida. Pediu a opinião da comunidade como esboço preliminar e nos fez partícipes dos diálogos de apresentação da própria carta à diocese. Sua confiança, com simplicidade, nos impressionou fortemente. Era o ano do XV centenário do nascimento de Bento de Núrsia e Martini, ao celebrar esta memória, recordou as suas fugas como jovem jesuíta de Roma a Subiaco e as perguntas candentes nele suscitadas pela experiência monástica. Talvez seja por isso que pensou na nossa comunidade. De fato, essa consulta inesperada abriu para nós uma janela, uma nova fecundidade na história da pequena comunidade monástica. Raízes eclesiais.
Naqueles primeiros anos (1984, 1986), dois grandes teólogos, parte viva da equipe fundadora da Faculdade Teológica da Itália Setentrional, morreram prematuramente. Martini era muito próximo de ambos, nós o vimos chorar diante da morte de Dom Luigi Serenthà. Eles haviam sido mestres também de nossa comunidade, e meus em particular, que acabara de obter uma licenciatura em teologia espiritual com Dom Giovanni Moioli. Fui chamada para ministrar um curso de teologia monástica. Para uma religiosa, era uma novidade absoluta. Para a Faculdade, uma escolha duplamente insólita: uma mulher, uma monja professora.
O cargo me abriu a porta para um diálogo pessoal com o arcebispo Martini, de confronto e verificação, tanto do lado espiritual quanto propriamente teológico: eu estava um pouco desorientada num colegiado de professores de notória envergadura de pensamento e severa orientação metodológica. Compartilhava com o cardeal perguntas e desorientação. Ele encorajava e impulsionava para enfrentar a colaboração, cruzando, desafiando as dificuldades, em todas as direções. Ele confiava na contribuição de uma reflexão monástica, enraizada na lectio divina, para a teologia acadêmica.
Depois para nós veio o tempo da provação. Uma hora crítica para a comunidade, com a mudança de abadessa: Martini ficou ao lado como sábio arcebispo. Acompanhou discernimentos, também graças à sua experiência de vida religiosa e como consultor da Congregação para os Institutos de Vida Apostólica e Sociedades de Vida Consagrada. A sua presença não era intrusiva nem autoritária, mas mansamente de autoridade: recordava os princípios e as etapas, deixava-nos inventar o caminho: atravessar a hora da crise com profundo respeito por toda diversidade e potencial conflito, persuadidas do bem da "pro veritate adversa diligere".
Ele tinha a arte de ajudar a encontrar o fio do sentido de situações intrincadas, a atravessá-las sem medo, relacionando-as às grandes narrativas bíblicas. À luz da Palavra de Deus nos era reproposta para novas narrativas. Isso tornava o seu cuidado pastoral profundamente familiar e eficaz: era o fundamento comum da lectio divina que se revelava uma poderosa ajuda para nós. Débora, Judite, Elias, João Batista, personagens bíblicos vividamente evocados para nos ajudar a compreender as dificuldades e as labutas da vida comunitária como parte de uma história de salvação em que a palavra decisiva vem de Deus. E para aquelas entre nós que mais sentiam o peso de situações de contraste ensinou a descobrir uma virtude evangélica crucial: a eulabeia. Ele mesmo a teria redescoberto com nova evidência mais tarde, na época de sua doença, como arte de atravessar momentos pesados e pessimismo, transformando o passo arrastado em dança ao som da música. Quão eficaz foi para nós este Magistério, extremamente concreto ao sugerir um estilo de vida regenerado pelo Evangelho! A expressão suprema desse magistério nos teria sido oferecida na última etapa de sua vida, quando - em uma nova cátedra, aquela de extrema solidão - nas pegadas de Jesus (Hebreus, 5, 7) testemunha entender a morte como aquele gesto de vida, de verdadeiro abandono à Palavra, de dedicação em que o homem mortal encontra a revelação do seu próprio ser. “Algo heroico? Não: algo muito simples (...) como uma criança, um ato cheio de gratuidade” (Carlo Maria Martini, Maddalena, 2018, página 108).
Quando em 1998 aceitou o convite para o encontro pelo 650º aniversário da conclusão da fábrica da abadia de Viboldone, encontrando-se com seu amigo monge Ghislain Lafont, reforçou o mandato para a comunidade: "Estar atento, escutar, aceitar, deixar-se impressionar pelos valores alheios, expressando livremente os próprios. Tudo isso é o que se requer de cada comunidade monástica no coração da cidade ou nas margens da cidade, mas sempre como lugar de referência: o valor fundamental a ser testemunhado é a humildade”. Um tema muito caro para ele: "Há um princípio simples, típico do cristão, que o monge assume em sua plena radicalidade: construir a unidade de sua vida em torno do primado de Deus. Vocês sabem bem que isso também é uma prioridade para o nosso caminho diocesano. Tudo o que vocês fazem para realizar esse altíssimo ideal é, portanto, também um serviço concreto à nossa diocese”.
A plena expressão do cuidado e do magistério do “nosso” Martini nos foi doado por sua última cátedra: a alta herança de sua enfermidade. Várias vezes fui recebida por ele, e não sozinha. Ele encorajava, com voz fraca que mal deixava entender as palavras, e a mensagem era forte e decidida, até mesmo impetuosa. Nas dificuldades e tribulações atravessadas pela comunidade, confirmava: seguir em frente com confiança, por uma causa comum; toda a Igreja que vai assumindo conotações minoritárias, “aprende com vocês a arte de resistir na esperança”. O estilo do encontro havia mudado profundamente: nenhuma distância (apesar das limitações da doença), afabilidade, até doçura, visivelmente sensível a todo sinal de afeto: permanece impresso seu sorriso infantil de satisfação quando - sabendo-o aflito pela hospitalização - ousei lhe levar um presente, junto com o livro de Mestre Eckhart, O Homem Nobre, um frasco de água de colônia.
O último encontro, inesquecível: da poltrona em que estava afundado quis levantar-se com as pernas trêmulas para um abraço que, inesperado, quase me dominou. "O amor de Deus acima de tudo" foi sua resposta à irmã que, comigo, lhe perguntava: "Abá, diga-me uma palavra". Na extrema espoliação da doença mortal, na nudez de deixar um legado sem vê-lo acolhido, a mansidão como forma de viver "completamente" a história.
Alguns dias depois ele daria aquela entrevista que foi lida como testamento espiritual. Mas o que ele disse, já sem voz, mas com paixão ardente - excesso revelador - antecipava todo o conteúdo. Ecos inacianos ressoavam altos naquele corpo quenótico, agora consumido, enrijecido pelo mal, mas transbordante de fé, afetos, dom de herança vital:"Não conhecer limites nas maiores coisas, estar porém circunscrito ao menor, é divino" (1)
1.- "Non coerceri a maximo, contineri tamen a minimo, divinum est" é a frase em latim, de um jesuíta desconhecido, autor de Imago Primum Saeculi S.J., retratando Santo Inácio. (citado em Karl Rahner, Inácio, Homem de Igreja, Porto, 1966, p. 20).